Fazendeira é responsabilizada por esquema que desviava FGTS e seguro-desemprego de funcionários mantidos como escravos em cafezal na zona rural de Barra do Choça (BA)
Por Guilherme Zocchio*
A Justiça do Trabalho da Bahia reconheceu um esquema de desvio de recursos das obrigações trabalhistas e as péssimas condições de trabalho a que eram submetidos trabahadores da fazenda de café Água Fria, no município de Barra do Choça (BA).
O mandado de segurança, expedido pelo Tribunal Regional do Trabalho da 5ª região no início de agosto, acolhe o pedido do Ministério Público do Trabalho (MPT) para que a proprietária da fazenda, Rejane Rocha Xavier, regularize de imediato os registros trabalhistas e as condições de trabalho de 51 funcionários, sob risco de multa. A liminar havia sido negada em primeira instância. Uma ação pedindo indenização por danos morais e coletivos ainda corre na Justiça do Trabalho.
Foi a suspeita de fraude que levou à fazenda fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e agentes do MPT, em agosto do ano passado. “Verificamos que os trabalhadores viviam em condições degradantes enquanto tentávamos apurar um indício de fraude envolvendo o seguro-desemprego”, conta o auditor fiscal do trabalho responsável por coordenar a inspeção, Joatan Batista Gonçalves dos Reis.
Salários pagos às custas do Estado
A fraude ocorria a partir de um esquema que a empregadora montou para remunerar seus funcionários usando recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e do seguro-desemprego dos próprios trabalhadores. “Era uma sistemática de aliciamento que durou no mínimo quatro anos”, diz Joatan. Segundo o MPT, a fazenda causou prejuízo de mais de R$ 200 mil aos cofres públicos.
Os funcionários trabalhavam por seis meses recebendo salário inferior ao mínimo, enquanto a fazenda recolhia normalmente o FGTS. Na seqüência, embora continuassem trabalhando, eles eram formalmente despedidos. Constava na rescisão contratual um indicativo de falta em quase 25 dias por mês, de modo que a demissão custava muito pouco para o empregador.
Em nome dos trabalhadores, era pedida a liberação do seguro-desemprego e dos recursos do FGTS, que eram desviados pela fazenda para pagar os salários. Meses depois, os funcionários eram readmitidos e ciclo se repetia.
De 2008 a 2011, a empresa chegou a receber 45 autos de infração. Todas as multas aplicadas pelo MTE eram descontadas diretamente do salário dos trabalhadores, segundo apurou a fiscalização.
A fiscalização do MTE descartou a hipótese de cumplicidade dos 51 libertados neste esquema. “Apesar de caracterizada a fraude, cabe salientar que o trabalho rural é, sem dúvida, o elo mais frágil desta cadeia produtiva”, aponta o auditor fiscal Joatan. “Trata-se de uma forma de organização do trabalho criada e mantida com o objetivo de exploração da mão de obra dos mais desfavorecidos na escala social”, completa.
A fraude dificultou o resgate. “Para fazer o resgate de trabalhadores precisamos emitir a guia do seguro-desemprego, que já estava em uso”, explica o auditor fiscal. O MTE precisou primeiro abrir uma auditoria para comprovar a fraude, e então libertar os trabalhadores em uma segunda fiscalização.
Além dos registros de demissão e admissão, a fazenda também falsificava a assinatura de um médico de Vitória da Conquista (BA), município a cerca de 37 km de Barra do Choça (BA), em documentos apresentados ao MTE. De acordo com Luiz Felipe dos Anjos, membro da procuradoria do Trabalho da 5ª região (PRT-5), o empregador chegou a apresentar três assinaturas diferentes de um mesmo médico.
Escravidão contemporânea e processo
De acordo com o MTE, os trabalhadores libertados cumpriam uma jornada exaustiva, sem equipamentos de proteção individual (EPIs), disponibilidade de materiais de primeiros-socorros ou instalações sanitárias adequadas, o que os obrigava a fazer as necessidades fisiológicas no mato.
Ainda segundo os fiscais, a água disponível para o grupo era armazenada em garrafas reutilizadas de fertilizantes, agrotóxicos, óleo ou graxa e estava em condição visivelmente imprópria para o consumo. Os alimentos eram armazenados no chão, expostos a moscas, outros insetos e roedores, e consumidos já em estado de putrefação.
Diante desse quadro, a PRT-5 preferiu não firmar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a empregadora e acioná-la diretamente na Justiça. Na ação civil pública, ajuizada em abril, com pedido de liminar para a regularização imediata da situação dos trabalhadores, o MPT pede ainda indenizações por dano moral coletivo e pela prática de dumping social no valor de R$ 500 mil, além de compensações de R$ 10 mil para cada trabalhador libertado; no total, é mais de R$ 1,5 milhão.
Em junho, a 2ª Vara do Trabalho de Vitória da Conquista indeferiu o mandado de segurança. “O juiz alegou que não havia urgência no processo e que a liminar prejudicaria a colheita do café, próxima àquela data. Ele levou em conta apenas a parte do empregador, mas nós buscamos o emprego também, e emprego decente”, diz o procurador Luiz Felipe à Repórter Brasil.
O MPT conseguiu no início de agosto o mandado de segurança em vigor, revogando a decisão do juiz de primeira instância. O processo continua em trâmite no Tribunal do Trabalho da 5ª região (TRT-5), esperando uma decisão definitiva.
Também a prática dos crimes de estelionato, falsificação de documentos, falsidade ideológica e submissão de trabalhadores a condição análogas às de escravo está sendo apurada pelos Ministérios Públicos Estadual (MPE/BA) e Federal (MPF) e pode dar origem a novos processos. Rejane Rocha Xavier ainda poderá ser incluída na “lista suja” do trabalho escravo, registro mantido pelo MTE dos empregadores que se utilizaram de mão-de-obra em regime de escravidão contemporânea.
*com informações da assessoria de imprensa da SRTE/BA