*Margarida Barreto
Muito temos lido, escutado, falado e escrito sobre as mudanças do capitalismo nas últimas décadas. Hoje, os corpos, enquanto força do trabalho, humana e afetiva, passam a ser controlados e avaliados, rigorosamente. Portanto, sua experiência afetiva no meio ambiente do trabalho e relações laborais, tanto pode ser ignorado como glorificado, o que altera seu modo de andar a vida, influindo em seus sentimentos, emoções e jeito de vê o mundo. Se em outros momentos, são corpos punidos e castigados, em especial, por não atingir a meta de produção imposta, a dor de viver se corporifica, mostrando a dimensão do sofrimento no trabalho.
A história do corpo produtivo, não está marcada, simplesmente, pelo nascer, envelhecer e morrer. Neste trajeto, o trabalho e o amor, são temas centrais em nossas vidas que, tanto podem deixar “marcas e sinais” potencializadores e que nos dão forças, enchendo-nos de alegrias e orgulho como podem nos revoltar e entristecer; nos anular e até mesmo, matar nossos sonhos e esperanças. O modo como experenciamos o trabalho, pode fortalecer nossa identidade e desejo, corporificando uma imagem positiva de si mesma e do seu entorno. Essa imagem, pode ser influenciada e determinada pelos modos de organizar o trabalho, pelas relações laborais assim como pelos laços que se estabelecem no entorno do trabalho. Quando fraternos, somos afetados e nos identificamos pela via da cooperação, solidariedade e ajuda mútua que se estabelecem no cotidiano fabril. Ao contrario, quando há competitividade acentuada, disputas constantes, pressão moral, discriminações, humilhações e constrangimentos, o ambiente de trabalho mostra-se hostil e cada um luta por si, em defesa do seu lugar, de sua ascensão profissional e manutenção do seu emprego.
Esse ambiente se mostra saudável somente quando há respeito e reconhecimento ao outro; quando as tarefas são divididas de forma equitativa e igualitária, segundo o conhecimento e experiência de cada um; quando os salários são iguais para a mesma função, independente do sexo. Entretanto, quando a divisão do trabalho obedece a critérios personalíssimos, permeado por preferencias hierárquicas e individuais ou, ao contrario, quando as punições, controles e castigos são impostos sutilmente, àqueles que criticam ou discordam de determinada imposição; quando há assedio sexual e discriminações por razão do sexo, idade, orientação sexual e opção religiosa, esse meio ambiente do trabalho não pode ser gerador de felicidade e sequer saúde. Nossas relações com os colegas se dão durante a jornada de trabalho que às vezes, se estende por mais de oito horas. Se nos identificamos e nos ajudamos mutuamente, o trabalho será fonte de prazer e auto referência, experenciado pelo corpo. Se, ao contrário, sofremos em consequências da pressão e opressão moral em busca de maiores metas, maior produtividade, desenvolvemos insegurança, ansiedade, medo e até desprazer.
Reafirmamos que o corpo biológico se revela em mulheres e homens; branco, amarelo, índio ou negro; gordo, forte ou magro. O construto sócio-histórico por outro lado, nos fala do corpo sarado, atlético, belo, feio, gay, hetero, trans, lésbica; cristão, evangélico ou ateu. Essa diversidade de combinações, quer genéticas ou construto social que nos aparecem como tão estimulantes ou deprimentes, podem simultaneamente, gerar exclusão, isolamento e aceitação, quando olhamos o que acontece no mundo do trabalho. Um homem ou mulher que é visto pela aparente beleza do corpo, pela saúde perfeita, pela capacidade de aceitar os desafios das jornadas estendidas, por não reclamar e sequer adoecer, por ser doce e viril, por ser ressiliente e nunca rezingar ou faltar, não pode ser próprio de um ambiente saudável.
Mesmo quando as empresas falam de missão, valores, ética corporativa e sustentabilidade, o que constatamos é uma distancia muito grande entre o dito e o vivido. Na prática, essas ideias discursivas são nada mais que fantasias, ilusões, promessas que disfarçam o conteúdo ideológico – quer nos diferentes espaços sociais como nos intramuros das empresas – camuflando a realidade do intramuros: numero crescente de doenças, acidentes, mortes e atos de violência. Qual a causa destas ocorrências? Porque do seu nascimento? Será que podemos falar em trabalho decente no interior das empresas? Muitas respostas, encontraremos sua compreensão na lógica fria e calculista do lucro a qualquer preço e sob qualquer condição, independente do adoecer ou morrer da classe que- vive-do-trabalho. Para maior compreensão, falaremos de forma resumida, da história de apropriação do corpo e emoções dos trabalhadores pelo capital, ao longo do último século, quando as politicas de gênero, identidade sexual e racial, adquirem importância fundamental na luta social.
O capitalismo, enquanto forma sociohistórica e organizadora da vida em torno do mercado, nasce em pleno século XVI porem, toma forma e se conforma ou configura de forma total, a partir do século dezoito. Com ele, nasce à divisão social do trabalho e da sociedade em classes; os corpos dos trabalhadores são transformados e comprados como meras mercadorias – que produzem com seu trabalho novas mercadorias que circulam – e, consequentemente, a apropriação da força de trabalho pelo capitalista e sua maior exploração. Deste modo, para sobreviver, os trabalhadores vendem o único bem que possuem: sua força de trabalho, uma mercadoria a qual ainda é dono.
Desde seu nascimento, o capitalismo impõe e aprofunda as desigualdades entre classes e entre homens e mulheres. Desde seu nascimento, o capitalismo prometeu aos trabalhadores e trabalhadoras um reino de riquezas e liberdade, mas que fique claro: para aquele que se comprometer com seus ideais. A promessa não se efetivou e ao longo da historia da classe trabalhadora, a desigualdade se aprofundou, o trabalhador se tornou mais sujeitado e humilhado em uma relação entre desiguais, constatando a impossibilidade da liberdade, que se restringe ao seu poder de compra e consumo.
O tempo que passa historicamente exibe aos poucos, a precarização cada vez maior do trabalho e baixos salários; as condições inseguras para realizar a tarefa; as constantes violações dos direitos em meio a jornadas estendidas e emprego incerto; as humilhações e pressão moral generalizada ante uma gestão que administra com olho nos lucros e maior produção. É uma gestão em essência quantofrênica, voltada para maior quantidade de produtos, maiores lucros e menos gastos. É neste complexo contexto que se impõe a luta pelo combate e erradicação das discriminações e práticas sexistas, dos atos de violência e xenofobias. O desvendar dos significados e sentido das praticas discriminatórias, deve ser um processo contínuo de desconstrução e reconstrução da feminilidade no trabalho, nas relações de gênero e na dinâmica familiar. Faz-se necessário buscar uma “vida que mereça ser vivida”, orientada pelos princípios universais de justiça, de reciprocidade, de igualdade de direitos e de respeito à dignidade dos seres humanos como pessoas individuais, mesmo que isso se apresente de forma incipiente e aparentemente contraditória. Está é a luta e a vida que vale a pena ser vivida.
*Médica do Trabalho. Doutora em Psicologia Social/PUC/SP